quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Estácio da Veiga e a “escrita do Algarve”

Um século depois de Frei Manuel do Cenáculo, o grande impulso no estudo da escrita do Sudoeste deve-se sobretudo aos trabalhos do arqueólogo algarvio Sebastião Philippes Martins Estácio da Veiga (1828-1891), que procurou a correlação das estelas com escrita do Sudoeste e o mundo das necrópoles da Idade do Ferro.

Terão sido os contactos estabelecidos entre Estácio da Veiga e o investigador alemão Emil Hübner (1834-1901), que em 1861 visita Portugal no âmbito do seu projecto de investigação Corpus Inscriptionum Latinarum, que provocaram no arqueólogo algarvio o interesse pelas antiguidades (Fabião, 2011: 140). Após a publicação de alguns trabalhos, onde se destaca de forma precursora uma concepção em que “o passado é encarado como uma continuidade” e que deve haver uma “indissociável ligação entre [o estudo d]os elementos móveis (…) e o local do seu achado” (Fabião, 2011:141 e 142), foi então incumbido oficialmente da Carta Archeológica do Algarve (1877). Nesta obra sistematiza a informação dos vestígios arqueológicos então existentes, uma novidade à época e que resulta ainda hoje numa referência obrigatória: as Antiguidades Monumentais do Algarve (1886-1891). É por isso considerado o primeiro arqueólogo profissional português (Fabião, 2011:139).
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É no decorrer deste trabalho que são identificadas, entre o interior e o limite sul do barrocal algarvio, diversas estelas. A maioria, quatro estelas com escrita do Sudoeste confirmadas e uma outra com reservas nessa atribuição, são recolhidas nas escavações que Estácio da Veiga desenvolve em Março de 1878 na necrópole de Fonte Velha de Bensafrim (Lagos), sítio que, posteriormente em 1895, António dos Santos Rocha (1853-1910) volta a intervencionar, identificando então outra estela.

De referir ainda a identificação por Estácio da Veiga em Cômoros da Portela (São Bartlomeu de Messines, Silves) de mais dois fragmentos de laje “de grés vermelho escuro” que podem pertencer a uma única estela (J.4.4). Na visita que faz ao local descreve que “as sepulturas estavam já em grande parte destruídas pelos lavradores” (Veiga, 1891: 259 e 286). Da sua autoria é também a indicação da existência de uma estela que, com muitas reservas, tem caracteres atribuíveis à escrita do Sudoeste, proveniente de Martinlongo, Alcoutim (Veiga, 1891:287). A partir de uma carta do Dr. Abel da Silva Ribeiro, refere também a notícia de que perto de Beja teriam sido encontradas outras “duas losas” com “caracteres gravados grosseiramente” e que por exclusão de partes foram considerados serem “os peninsulares” (Veiga, 1891: 202). Até aos dias de hoje, estes achados e sítios arqueológicos, situados a sua maioria no Barrocal Algarvio, delimitam o limite Sul das estelas com escrita do Sudoeste.

Fragmentos de estelas de Cômoros da Portela (Veiga, 1891: est. XXXVII) 
e sua reconstituição (Untermann, 1997:230 – J.4.4).

Epígrafe de Martinlongo (Untermann, 1997:108).

 
A importância destas estelas com escrita do Sudoeste, e provavelmente os contactos estabelecidos entre Estácio da Veiga e o investigador alemão, resultaram na sua inclusão na obra sobre escritas e línguas pré-romanas publicada em 1893 por Emil Hübner, Monumenta Linguae Ibericae, ainda hoje um importante marco na investigação sobre o tema.

Estes achados resultaram na adjectivação da escrita como sendo “do Algarve”, igualmente referida como “escrita ibérica”, “escrita turdetânica” ou “escrita tartéssica” (Correia, 1997: 265). A definição conceptual desta escrita arrastou-se pelo menos até à primeira metade do século XX, onde era ainda assumida como “inscrições ibéricas do Algarve” (Machado, 1964: 69). Só com a resolução de algumas questões científicas relacionadas com outros conceitos associados ao tema e com a localização de mais exemplares num âmbito geográfico mais alargado entre o Alentejo e o Algarve, foi sendo assumida como “escrita do Sudoeste”, sobretudo a partir da década de 70 do século XX.

Todos estes achados algarvios de finais do século XIX ocorreram no início da arqueologia científica, que começava a privilegiar a escavação com base numa sequência estratigráfica segundo as leis geológicas, mas que muitas vezes se limitava à abertura do terreno com o objectivo de atingir a maior área possível e à recolha dos artefactos mais apelativos. Contudo, a quase ausência de escavações arqueológicas nos sítios de proveniência das estelas com escrita do Sudoeste e a natureza do trabalho em Fonte Velha de Bensafrim não permitem ter uma precisão concreta quanto aos contextos das estelas e à sua associação primária aos monumentos funerários, elementos essenciais nos dias de hoje, quando se procede não apenas a uma sistematização da informação arqueológica mas também ao debate deste tema.

Contrariamente ao pioneirismo demonstrado na metodologia de trabalho, nas conclusões obtidas noutros temas, e na cautela tida na interpretação do que ai estaria escrito referindo que “não sei ler nem tento querer ler estas inscripções” (Veiga, 1891: 302), as conclusões sobre a escrita do Sudoeste, assunto à data propício à especulação, não são motivo para recordar, pondo em causa o mérito do seu trabalho de muitos anos (Guerra, 2007: 113). Estácio da Veiga considerou, no capítulo VII do último volume das Antiguidades Monumentaes do Algarve (1891), haver uma diferença entre as estelas alentejanas e as algarvias, numa interpretação ultrapassada já pelas ulteriores investigações sobre estes materiais e período cronológico. As primeiras, publicadas por Frei Manuel do Cenáculo e identificadas entre Ourique e Almodôvar, eram consideradas por Estácio da Veiga como sendo da Idade do Bronze, pela sua associação aos estoques de bronze. Análises posteriores revelaram que apenas um estoque é deste material (Guerra, 2007: 107). Já as epígrafes do Algarve eram associadas à Idade do Ferro (Veiga, 1891: 204-207).

Esta leitura, negada pelo errado enquadramento dos estoques – apesar do reconhecimento de uma mesma escrita, em diferentes épocas e regiões, pretendia apoiar uma visão que opunha de forma obstinada Estácio da Veiga aos ”orientalistas” e à adscrição fenícia da escrita. O arqueólogo algarvio era defensor de uma maior antiguidade desta escrita, chegando mesmo a considerar uma origem Pré-Histórica, “em pleno periodo neolithico”, suportado pelo que considerava ser um paralelo nos “grafitos” cerâmicos da Cueva de Los Murciélagos (Granada) e desta forma existir uma inversão da influência da escrita. Estácio da Veiga defendia assim o aparecimento desta escrita na Península Ibérica e a sua deslocação posterior para o oriente, ciente que seria declarado “herectico” perante a “invectiva da vaidade offendida” dos que chamava serem “mais phenicios que os proprios phenicios” (Veiga, 1891: 327).


Bibliografia citada:
CORREIA, V. H. (1997) - As necrópoles algarvias da I Idade do Ferro e a escrita do Sudoeste. In Barata, M. F. (coord. Edit.), Noventa Séculos entre a Serra e o Mar, Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico, p. 265-279.
FABIÃO, C. (2011) – Uma História da Arqueologia Portuguesa. S.L: CTT Correios de Portugal
GUERRA, A. (2007) – Estácio da Veiga e as prespectivas oitocentistas sobre a escrita do Sudoeste. Xelb, Silves: Câmara Municipal de Silves. Vol. 7, p. 103–114.
MACHADO, J. L. S. (1964) - Subsídios para a História do Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcellos. O Arqueólogo Português, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia. 2ª Série, nº V, p. 51 - 448.
UNTERMANN, J. (1997): Monumenta Linguarum Hispanicarum, Band IV. Die tartessischen, keltiberischen und lusitanischen Inschriften. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag.
VASCONCELLOS, J. L. de (1897) - Religiões da Lusitânia. Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional.
VASCONCELLOS, J. L. de (1913) - Religiões da Lusitânia. Vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional.
VASCONCELLOS, J. L. de (1899-1900) - Novas inscripções ibéricas do Sul de Portugal, O Arqueólogo Português, Lisboa: MNA. 1ª Série: 5, p. 40-42.
VEIGA, S. P. M. Estácio da (1891) - Antiguidades Monumentaes do Algarve, IV. Lisboa: Imprensa Nacional.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Estelas do Cenáculo (II)

Do momento inaugural da descoberta e interesse pelas estelas com escrita do Sudoeste, nos finais do séc. XVIII e dado a conhecer no Álbum do Cenáculo (Biblioteca Pública de Évora - códice CXXIX), constavam – como vimos anteriormente – as cinco estelas ditas de Ourique e outras três situadas no concelho de Almodôvar. São designadas por “Vale de Ourique” (A. Cen. 91; Üntermann J.11.4), “Guedelhas” (A. Cen. 1,13) e “Góias” (A. Cen. 47. Üntermann J. 27.1) e encontram-se todas desaparecidas. Estas três proveniências devem ser assumidas como áreas genéricas de localização das epígrafes.
Estela de Góias: a partir do Álbum do Cenáculo, do desenho de Zóbel de Zangróniz (Almagro-Gorbea, 2003) e a partir das cópias de Estácio da Veiga dos desenhos do Álbum do Cenáculo

Na continuidade geográfica do conjunto de Ourique, a estela de Góias situar-se-á em torno da aldeia do Rosário (Almodôvar). Nalgumas das sistematizações destes conjuntos epigráficos (Beirão, 1986: 127; Correia 1996: 71) esta estela tem sido associada ao Monte das Góias em São Miguel do Pinheiro (Mértola), contudo não se deve deixar de atender à legenda que surge no seu desenho do Álbum do Cenáculo que aponta para a “Alegoa do Soeiro junto de Almod.ar p. Sra. Do Rosário” (Beirão, 1980: 9). Apesar da existência do topónimo em São Miguel do Pinheiro (Mértola), a zona do Rosário (Almodôvar), pode, por hipótese, corresponder ao local de proveniência desta estela.

No local hoje chamado de Lagoa do Soeiro (Almodôvar) apenas foi reconhecida uma ocupação Medieval/ Moderna (CNS 1033), mas existem outras informações que revelam a importância da área durante a Idade do Ferro. É entre os conjuntos de Ourique e de Neves/ Corvo (Castro Verde e Almodôvar), que se localiza a descoberta mais recente de uma estela epigrafada do Sudoeste, a de Monte Gordo, reaproveitada num monte junto à povoação do Rosário. Deve-se ainda ter em consideração a notícia de Leite de Vasconcellos (1933: 235) do aparecimento, por volta de 1913, de oito espetos de bronze no Rosário, cujo actual paradeiro também é desconhecido.

As prospecções do Projecto Estela revelaram ainda vestígios que, com algumas reservas, atendendo aos paralelos construtivos conhecidos na área face à ausência de materiais, podem estar relacionados com um enquadramento Pré/Proto-histórico: Ataboeira, eventual monumento funerário composto por uma pequena elevação circular que poderá corresponder a um tumulus, e Atalaia 2, com uma mamoa demarcada no topo de uma elevação que lhe aufere um amplo domínio visual.

 Vista Geral da zona do Rosário a partir de Atalaia 2

Para Este, nesta zona de peneplanície, encontra-se a importante área arqueológica de Neves-Corvo que deu a conhecer as estelas de Neves 2, do Touril e o signário de Espanca, nos limites do concelho de Castro Verde com Almodôvar. Num privilegiado eixo de passagem para Sul, seguindo para montante da Ribeira de Oeiras ao encontro da Ribeira do Vascão, localizam-se as outras duas estelas com escrita do Sudoeste deste conjunto, uma possivelmente junto da actual povoação de Guedelhas e a outra no lugar de Vale de Ourique.

Guedelhas, local referido nos finais do século XVIII por Frei Manuel do Cenáculo de Vilas-Boas como sendo a origem de um achado de uma estela com escrita do Sudoeste traz algumas questões, ainda de difícil resolução. Os parcos elementos que apresenta a sua representação gráfica, que a tornam de difícil compreensão e o facto de não se conhecer hoje o seu paradeiro levam a que não seja considerada um monumento epigráfico. Contudo, nos inícios do século XX Leite de Vasconcellos (1933: 243 e 244) identificou vestígios de povoamento na chamada Herdade das Guedelhas (CNS 6325). Apelidados de "moirama" os achados foram identificados “no curralinho antes do monte, [de] tegulae e [de] uma mó” e uma “pedra de raio” - tendo um machado de pedra polida sido identificado no monte. Nas prospecções realizadas não houve lugar a qualquer confirmação destes dados, o que se pode dever, por um lado, ao tempo já decorrido desde essas observações e, por outro, pela falta de informação concreta sobre a localização do achado. Significará isto que pode haver uma associação do topónimo à Herdade, que nessa altura teria muito maiores dimensões do que nos dias de hoje tem. Quanto à epígrafe, recorde-se ainda que, segundo alguns autores, o seu desenho não permite uma leitura segura (Üntermann, 1997 e Correia, 1996).


Estela de Guedelhas: a partir do Álbum do Cenáculo e 
do desenho de Zóbel de Zangróniz (Almagro-Gorbea, 2003)


É ainda nas proximidades da Ribeira de Oeiras que se julga ter sido localizada a estela de Vale de Ourique, (CNS 3167). Frei Manuel do Cenáculo relata que, a 5 de Agosto de 1878, é informado por carta de como a estela estaria a ser reutilizada como assento das colmeias do lavrador José Roiz. No âmbito dos trabalhos do Projecto Estela, no local hoje designado por Monte de Vale de Ourique de Cima (Almodôvar), a história parece ter persistido na memória dos seus moradores, contudo não foram identificados quaisquer vestígios arqueológicos associados.

Deve-se contudo referir que, entre estas duas localizações, ao longo das Ribeiras de Oeiras e do Vale, existem vestígios associados à Idade do Ferro. Notícias orais de eventuais estelas epigrafadas, entretanto desaparecidas, possivelmente destruídas aquando de trabalhos agrícolas ou reutilizadas numa casa no Monte das Mestras, estão associadas a Valagão 1 (CNS 24045), necrópole de onde existe ainda a informação da existência de uma urna cinerária. Monte Beirão 1 (CNS 3161) corresponderá a um povoado (Beirão, 1986: 52 e 53) onde foram recolhidos, entre outros materiais, uma ânfora grega (Beirão, 1986: 55 – fig. 7 A) então datada entre os séculos VII e V a.C. (Beirão e Gomes, 1980: 29 e fig. 299), mas que deve corresponder à primeira metade do século IV a.C. (Arruda, 1997: 93), e um espeto (ou estoque) em bronze (Beirão e Gomes, 1980: 29). A primeira trata-se, até hoje, do único fragmento de ânfora vinária grega identificado no actual território português (Arruda e Gonçalves, 1995:25). Existe ainda a indicação de uma ponta de lança e de uma haste em ferro (Beirão e Gomes, 1980: 26; Silva e Gomes, 1992:249) na necrópole de Monte Novo da Misericórdia (CNS 3160), e informações orais mencionam a existência de urnas, junto a uma estrutura que se define numa pequena câmara no Cerro das Bonecas/Aguentinha (CNS 22051).



Estela de Vale de Ourique: a partir do Álbum do Cenáculo, do desenho de Zóbel de Zangróniz (Almagro-Gorbea, 2003) e a partir das cópias de Estácio da Veiga dos desenhos do Álbum do Cenáculo


 Bibliografia citada:

ALMAGRO-GORBEA, M. (2003): Epigrafía Prerromana. Real Academia de la Historia, Catálogo del Gabinete de Antigüedades, Madrid.
ARRUDA, A. M. (1997): As Cerâmicas Áticas do Castelo de Castro Marim no Quadro das Exportações Gregas para a Península Ibérica. Seguido por O Corço, a Kilix e Dyonisos (uma Breve Nota sobre Cerâmica e Símbolos). Lisboa: Edições Colibri.
BEIRÃO, C. de M. e GOMES, M. V. (1980): A I Idade do Ferro no Sul de Portugal: Epigrafia e Cultura. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia.
CORREIA, V. H. (1996): A epigrafia da Idade do Ferro do Sudoeste da Península Ibérica. Porto: Ed. Ethnos.
UNTERMANN, J. (1997): Monumenta Linguarum Hispanicarum, Band IV. Die tartessischen, keltiberischen und lusitanischen Inschriften. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1791): Cuidados literários do prelado de Beja em graças do seu bispado.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1800): "Sesinando Mártir e Beja sua Pátria". Arquivo de Beja, vol. V e seguintes.
VILAS-BOAS, D. F. M. do C. (1813): Graças concedidas por Christo no campo de Ourique acontecidas em outros tempos e repetidas no actual conforme aos desenhos de sua edade. Lisboa.
VASCONCELLOS, J. L. (1933) - Excursão pelo Baixo Alentejo. O Archeólogo Português. Iª série. Nº 29 (1930-1931), p. 230-246